Por Caroline Lanhi
Na comunidade São Gonçalo Beira Rio, em Cuiabá, a cerâmica ainda faz parte da rotina dos ribeirinhos graças ao trabalho de aproximadamente 10 artesãos que resistem na Associação dos Ceramistas São Gonçalo para não deixar essa arte cair no esquecimento. No olhar desses artistas, um misto de alegria e tristeza entre a importância da cerâmica para a identidade do local e o lamento pelo desinteresse dos mais jovens em manter a tradição.
Hoje, a lenha é adquirida com terceiros e não é preciso remar rio abaixo para buscar a argila nos barrancos. Basta solicitar o material junto a cooperativas, que cobram apenas pela mão de obra. Mas a facilidade não é suficiente para atrair novos artesãos. Alice Conceição de Almeida, 66 anos, presidente da associação, lembra da época em que o grupo contava com 60 membros. Agora, ela teme que a tradicional cerâmica de São Gonçalo esteja com os dias contados. A falta de interesse estaria relacionada ao fato da cerâmica não render ao artesão um salário fixo, como em outras profissões, supõe a presidente.
A palavra cerâmica vem do grego “keramos”, argila, e se refere à manufatura de objetos a partir do barro que depois são cozidos no forno à lenha. É uma arte milenar, presente na história e na cultura de diferentes povos, do Oriente ao Ocidente. Em São Gonçalo Beira Rio, registros históricos apontam que a cerâmica foi introduzida pelos índios Coxiponés, que viviam na região e influenciaram na cultura dos “novos” moradores.
O povoamento da comunidade se deu a partir do século 18, com as primeiras expedições de bandeirantes paulistas a Mato Grosso. Localizada à margem esquerda do rio Cuiabá, a comunidade se fortaleceu com a descoberta do ouro, tornando-se Arraial de São Gonçalo Beira Rio. Nessa época a cerâmica fazia parte do dia-a-dia das pessoas na forma de utensílios domésticos como moringas e vasos para guardar mantimentos.
Com o tempo a técnica, passada de geração em geração, especialmente entre as mulheres, se tornou identidade e fonte de renda em São Gonçalo. “A cerâmica aqui na comunidade representa tudo”, emociona-se a artesã Juraci Marcelina da Conceição, 52 anos, que começou a fazer as primeiras peças quando tinha apenas nove.
Juraci não precisou de “aula” para dar forma ao barro, aprendeu observando o trabalho da mãe e, aos 11, já comercializava algumas peças. “Meu pai levava lá para o (bairro) Porto, vendia e trazia um dinheirinho para mim”. Assim como outras artesãs, Juraci chegou a abandonar a atividade por um tempo – quando foi trabalhar como doméstica – mas depois de casada voltou para a cerâmica e nunca mais parou.
Das mãos das ceramistas saem, além das tradicionais moringas, peças decorativas que caíram no gosto dos turistas, principalmente galinhas e frutas. Ao deixar de ser apenas um utensílio doméstico e se transformar em peça de arte, a cerâmica também ganhou novas pinturas feitas com tauá – pigmento natural vermelho ou branco obtido a partir do barro. Mas na loja de artesanato da comunidade se encontra de tudo, de imagens de santos a pequenas reproduções de casais dançando, retrato da vida cultural de quem vive no Vale do Rio Cuiabá.
Além de renda, a cerâmica é também um momento de lazer e reflexão. À tarde, depois dos afazeres domésticos, Juraci pode ser encontrada nos fundos de casa, próximo ao tanque de lavar roupas, em meio a torrões de argila, ferramentas e peças semiprontas. É lá, cercada apenas pelo barulho de passarinhos, galos e cachorros, que Juraci começa a dar forma ao barro e garantir, pelo menos por enquanto, a continuidade de uma tradição.
Passo a passo:
Primeiramente é preciso quebrar o torrão de argila e passar o material por uma peneira. Toda a parte grossa, que não passou pela peneira, é colocada de molho na água durante uma noite e, no dia seguinte, é amassada juntamente com a parte fina da argila. Quando o barro alcançar o ponto em que é possível dar forma, começa o processo de modelagem.
Nessa etapa é preciso agilidade, precisão e criatividade. Juraci explica que uma peça pequena pode ser modelada em apenas um dia, já as maiores são feitas em etapas. Com a modelagem finalizada, a peça precisa de tempo para endurecer. Por isso os artesãos guardam as peças nessa etapa até produzirem um grande número de cerâmica, só então seguem para a fase de acabamento.
Com as peças endurecidas é preciso fazer a raspagem da cerâmica para que ela receba pintura com tauá vermelho, seguido do “alisamento” - técnica que dá brilho à cerâmica. Após esse processo é que as peças recebem os desenhos em tauá branco e seguem para o cozimento.
“A sorte nossa está toda no forno”, revela Juraci. O cozimento é a etapa mais sensível e determinante para render boas peças, se algo der errado as obras podem rachar pelo excesso de calor ou escurecer devido a fumaça. O fogo é feito logo pela manhã para que as peças sejam cozidas lentamente, em fogo brando, ao longo do dia. Controlar o fogo por tantas horas exige técnica, paciência e, por que não, uma pitada de sorte.
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