- Escrito por Maria Lúcia Barreto Sá
O homem é um onívoro que estabelece regras alimentares, classificando o que é comestível ou não, transformando alimento em comida. Assim é que o que se come em determinada cultura não se come em outra. E assim é que trago aqui esta história...
Trafegando por rodovias que cruzam os municípios de São Bendito, Ubajara e Tianguá, região cearense chamada de Serra Grande ou Ibiapaba, deparei-me com algo inusitado. Mulheres, homens, jovens e crianças correndo no mato, de um lado para o outro, olhando ora para a terra, ora para os ares. Meus olhos seguiam o mesmo movimento, tentando entender o que estava acontecendo. Um brincadeira? Uma disputa? Uma coleta? O que seria?
Nas mãos, garrafas pet, baldes e latas, cujo conteúdo escuro eu não conseguia distinguir bem. Fiquei assistindo, por um bom tempo, aquilo que parecia ser uma atividade divertida para quem a praticava... enquanto pensava na estranha interação entre homem e natureza que observava. A convivência, o movimento, gritos e risadas, cheias de códigos entendidos por quem participava e não entendidos pelos de fora.
Ao aproximar-me, percebi que eram formigas voadoras, tanajuras negras e gordas. Indaguei para que serviam. Responderam que era pra comer e pra vender. Quando criança, tinha visto tanajuras no sertão, mas não tinha conhecimento de que podiam ser comidas.
Entre admirada e curiosa, perguntei sobre o sabor, pois antes de desafiar meus sentidos queria ouvir a apreciação daquelas pessoas e, quem sabe, espantar o medo do novo...
É gostoso... é bom... é uma delícia... tem muitagente que gosta... Parece milho de pipocatorrada... Parece amendoim torrado!!!
Estava ali o que eu queria ouvir: uma semelhança, uma identificação com algum alimento do meu repertório. Na verdade, queria entender o paladar pela leitura de meu cotidiano e, dessa forma, experimentar ou rejeitar.
O episódio ficou em minha memória e sempre que voltei à Serra Grande, nos períodos de dezembro a fevereiro, tive oportunidade de rever aquele ritual.
Formiga é comida?
Içá ou tanajura é a formiga fêmea da saúva - também chamada, no Ceará, de formiga de asa ou formiga de roça - no tempo da reprodução da espécie. Em tupi-guarani, significa "formiga que se come".
Ainda que a entomofagia (prática de alimentar-se com insetos) seja vista por muitos como "costume de gente primitiva", em diferentes partes do País esse alimento é considerado uma verdadeira iguaria.
Tendo origem em hábitos indígenas, o costume foi assimilado e hoje as formigas são consumidas em farofas ou ao natural - alimento cru, sem misturas -, torradas com água e sal, como aperitivo, acompanhando bebidas fermentadas ou destiladas. Há, ainda, relatos de outros modos de preparar o alimento, como é o caso do prato composto por abdomens ovados de tanajuras com arroz e feijão, sendo aí a formiga utilizada como substituto da carne.
A parte comestível é o abdômen da formiga, popularmente, a bunda de tanajura. A preparação mais apreciada e relatada ensina que devem ser lavadas e fritas em sua própria gordura, manteiga, banha ou óleo, para ficarem crocantes, adicionando-se, então, pimenta do reino e sal.
Formiga, comida e identidade
É conhecida a metáfora entre essas formigas e as mulheres de ancas largas: bunda de tanajura. No cerrado Goiano, as formigas são capturadas antes do acasalamento, pois considera-se que a tanajura virgem levanta a moral. No Ceará, as tanajuras têm sido vendidas como afrodisíaco. Há, assim, uma relação da tanajura com o corpo idealizado da mulher - cintura fina e ancas largas -, além do simbólico de comê-las antes do acasalamento e, portanto, em estado de virgindade.
As formigas revoam para acasalamento. Nas primeiras chuvas, as novas rainhas inundam os céus da Serra Grande: cai, cai tanajura, que é tempo de gordura. Para fazê-las baixar o vôo, a meninada - mas também os adultos - cantam a parlenda. Cai, cai, tanajura que teu pai tá na gordura.
Além do consumo local, o produto é "de exportação":
Latas e latas de tanajuras fritas correm o Brasil inteiro, paragozo e regozijo das amizades dos conterrâneos emigrados.Já comi, já ganhei de presente, presente fino, presentão!
Há uma identificação dos serranos da Ibiapaba com o uso das tanajuras como comida, constituindo-se em tradição que os distingue entre os cearenses. Como alimento, é altamente valorizado na região, sendo recompensa e prêmio em apostas:
Pago um queijo de coalho, uma lata de tanajuras torradas na banha de porco, e meiograjau de rapaduras de Serra Grande!
Sua captura é um ritual que mistura diversão, subsistência e prazer. Elas saem dos formigueiros e sobrevoam a cidade. Em bandos, as pessoas munem-se de seus instrumentos: galhos e gravetos, vasilhas com tampa... para que não escapem. Como têm ferrões, é valorizada a habilidade de retirá-los, para evitar as picadas.
O produto da captura é para consumo próprio e para venda em bodegas e bares, onde são usadas como tira-gosto. O que há de mais moderno é que podem ser congeladas para utilização em festividades como o carnaval, acompanhando cervejas ou cachaças da Serra. Com as novas técnicas de conservação, as tanajuras passam a ser mantidas para além de sua sazonalidade. Em casa, são compartilhadas por todos os membros da família. Na rua, são partilhadas em mesas de bares e restaurantes, entre amigos.
Além de valorizada culturalmente e de sua rica composição nutricional - enquanto que a carne bovina possui 20% de proteínas, as formigas contêm aproximadamente 44%, sendo sua composição ainda rica em sódio, potássio, ferro, cálcio e ácidos graxos - as tanajuras têm outros empregos além da comida: são também usadas como mezinhas. No sertão nordestino, mezinha é o nome que se dá ao remédio caseiro tido como certeiro.
Não existe melhor curaP'ra doenças de gargantaÉ bunda de tanajuraE injeção não adianta
Há uma crença popular que diz que formiga faz bem pra vista. Assim é que é costume comer tanajura no 13 de dezembro, dia de Santa Luzia: para o bem da visão.
E assim é que, ainda que diante de todas as possibilidades alimentares dos dias atuais, se atualiza, na Serra Grande, a prática de perseguir as tanajuras de um lado a outro, no tempo de revoada. Afinal, quem envia uma lata de tanajuras para um parente ou amigo distante, sabe que ao abrir a embalagem a terra natal será lembrada, com os aromas e sabores que só ali existem. Naquele instante, quem manda e quem recebe formam uma comunidade, pela comida. Comida memória, comida lembranças, comida identidade.
* Maria Lúcia Barreto Sá é uma nutricionista que anda pelas estradas da vida observando pessoas, comidas... e formigas.
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