Como uma tragédia ambiental transformou o pantanal em um "deserto de água"
Paulo Renato Coelho Netto
Colaboração para o UOL, em Campo Grande.
Colaboração para o UOL, em Campo Grande.
Rosana Evangelista/ANA
Arrombamento nas margens do rio Taquari na região da Boca do Caronal (MS)
Nas últimas décadas, centenas de fazendeiros, ribeirinhos, trabalhadores e pescadores foram obrigados a abandonar suas casas no pantanal do Mato Grosso do Sul.
Ficaram para trás cercas, cavalos, tratores, gado e milhares de empregos na maior planície alagável do planeta, resultado de uma tragédia ambiental de décadas causada pela ação do homem na região, o assoreamento (acúmulo de areia e sedimentos no leito fluvial) do rio Taquari.
O problema começou no final do anos 1970, a partir de uma iniciativa do governo federal, e ainda tem consequências. "Novos arrombamentos vão surgir e aumentar a área inundada", alerta a bióloga e pesquisadora Emiko Kawakami de Resende.
Arte/UOL
Localizada no norte do Estado, a área alagada se estende por 800 km, atravessando os municípios de Alto Taquari e Alto Araguaia (ambos no MT) e Alcinópolis, Bandeirantes, Camapuã, Costa Rica, Pedro Gomes, Rio Verde, São Gabriel do Oeste, Sonora, Corumbá e Ladário (no MS).
A Agência Nacional de Águas (ANA) informou que a região é um dos locais em destaque do Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai. Este estudo, no entanto, deverá ser finalizado apenas no início de 2018 para então ser enviado para análise do Conselho Nacional de Recursos Hídricos. A avaliação sobre a possível implantação do plano será feita pelo conselho, ainda sem data marcada, segundo a ANA.
É um passo rumo a um levantamento das águas e seu uso na região para tentar apontar ações necessárias para solucionar os problemas. Por enquanto, a bacia foi identificada como "extremamente crítica em relação ao potencial de erosão", tendo como causas "a predisposição natural da bacia às perdas de solo, pastagens cultivadas mal manejadas com desmatamento indiscriminado e a ausência de práticas conservacionistas de solo".
Guilherme Zei Vieira/Arquivo pessoal
A Fazenda São Bento fica abaixo da Boca do Caronal, ponto crítico onde as águas romperam a margem direita do Taquari
Águas invadiram mais de 11 mil km²
Enquanto o plano não segue adiante, continua a reclamação de ambientalistas e dos moradores da região. Segundo eles, o Taquari está entupido de projetos e entraves judiciais que não trazem resolução definitiva para o problema há mais de quatro décadas.
Para especialistas entrevistados pelo UOL, o assoreamento do rio é um dos grandes desastres ambientais do Brasil.
Antigamente, o Taquari era abundante em peixes diversos. Mas recebeu tanta areia que cobriu de sedimentos seu leito, afetando radicalmente o ecossistema pantaneiro, principalmente no Pantanal do Paiaguás. Em muitos lugares é possível atravessar a pé o rio, com no máximo água na altura da canela.
Tomadas pelo assoreamento, as águas do Taquari buscaram novos caminhos, romperam margens e invadiram mais de 11 mil km² de áreas pantaneiras que hoje ficam permanentemente inundadas. A partir de certo ponto, o leito do Taquari desapareceu. O problema pode ser visto a partir de imagens de satélite.
O fenômeno, chamado de arrombamento, acabou com milhares de hectares de pastagens. Com o pasto debaixo d'água, a pecuária, principal fonte de trabalho e renda no pantanal, tornou-se inviável.
Guilherme Zei Vieira/Arquivo pessoal
Peões conduzem o gado em pasto alagado no Pantanal do Paiaguás
Os retirantes das águas pantaneiras
O êxodo dos pantaneiros criou uma espécie nova de brasileiros, os retirantes das águas do pantanal. Eles fugiram da inundação para sobreviver da mesma forma que muitos nordestinos foram obrigados a deixar o sertão para não morrer na seca.
A partir da década de 1970, a água foi inundando aos poucos a fazenda, primeiro nas partes baixas até atingir o auge em 2011, quando uma grande enchente devastou o pouco que restava de área seca.
"Literalmente, 2011 foi a gota d'água. Não tínhamos mais condições de permanecer na São Bento. Arrendamos para um capataz vizinho para que o local não ficasse abandonado de vez. Nunca recebemos pelo arrendamento, embora o valor arrendado seja simbólico. Sem o gado, lá não existe mais nada que dê lucro", resume Pereira de Barros.
Para sobreviver, hoje o engenheiro agrícola trabalha como guia turístico e piloto de voos panorâmicos. Montou uma pequena empresa em Aquidauana (MS), a 141 km de distância da capital, Campo Grande. Praticamente todos os seus clientes são visitantes estrangeiros.
Marcelo Pereira de Barros/Arquivo pessoal
O piloto Marcelo Pereira de Barros com um de seus turistas famosos, o astronauta holandês André Kuipers (à esq.)
"Quem se preocupava com conservação de solos?"
A bióloga e pesquisadora Emiko Kawakami de Resende foi secretária estadual de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul e chefe-geral da Embrapa Pantanal, em Corumbá (MS). Ela explica que o assoreamento do rio Taquari teve início na década de 1970, com o programa federal "Plante que o João garante".
O João em questão era o general-presidente João Figueiredo, que governou o Brasil entre 1979 a 1985. A ordem era ocupar o cerrado, com vários tipos de plantações.
De acordo com Emiko Resende, essa ocupação acelerada dos solos arenosos, ao longo de sua bacia hidrográfica, sem os devidos cuidados com a conservação, trouxe como consequência erosões no planalto e depósitos de areia na planície pantaneira. "Quem no final da década de 1970 e início de 1980 se preocupava com conservação de solos?"
Esse processo, segundo ela, começou com a remoção da cobertura vegetal nativa, se acelerou e arrastou grandes quantidades de areia para a planície pantaneira rapidamente. Coincidiu ainda com períodos de chuvas intensas, o que agravou a erosão no planalto e o assoreamento na planície.
"Dessa forma, o rio, que tinha propensão ao arrombamento de suas margens, teve o processo acelerado em cerca de sete vezes e uma das consequências foi o arrombamento hoje conhecido como Caronal", explica a pesquisadora. "A grande responsável pela aceleração do problema foi a atividade agropecuária exercida de forma inadequada na parte alta da bacia onde predominam os solos arenosos altamente suscetíveis à erosão."
Para ela, o problema tende apenas a se agravar no pantanal. "No futuro, novos arrombamentos vão surgir a montante [mais para cima] do Caronal, aumentando a área inundada."
Inundação permanente apodrece árvores
Silvio Andrade/Arquivo pessoal
Árvores centenárias mortas pela inundação permanente no pantanal
No pantanal, foram identificadas 269 espécies de peixes, pelo menos 44 de anfíbios, 127 espécies de répteis, 582 espécies de aves e 152 espécies de mamíferos. Até agora, a Embrapa Pantanal já identificou quase 2.000 espécies de plantas.
O que renova todo o ecossistema pantaneiro é a oscilação natural dos períodos de seca e chuva. Com a inundação permanente no Paiaguás, árvores centenárias estão apodrecendo ou já morreram submersas nas águas.
A bióloga Emiko Resende diz que é equivocada a ideia de que onde tem água existe peixe. "Hoje, as áreas permanentemente inundadas do rio Taquari são pobres em peixes, tanto em abundância como em diversidade, funcionando ecologicamente como desertos aquáticos", afirma. "Pescadores e pecuaristas estão todos pobres, sem distinção de classe. Quanto mais aumentar a área permanentemente inundada, mais prejuízos econômicos haverá."
Há dificuldade em propor soluções para o problema, porque ainda prevalece na mente da maioria a máxima de que "onde há água, há peixe"
Emiko Resende, bióloga
Batalha judicial
Silvio Andrade/Arquivo pessoal
Área totalmente inundada há mais de 40 anos no Pantanal do Paiaguás (MS)
"O caso do rio Taquari é um dos maiores desastres ambientais do país e de difícil ou impossível recuperação total", afirma Luciano Furtado Loubet, promotor de Justiça do Núcleo Ambiental do Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul. "Talvez seja possível minimizar e mitigar alguns danos, mas é importante que nós aprendamos com os erros cometidos para que não se repitam em outros locais", diz.
De acordo com o promotor, o Ministério Público Estadual ajuizou uma ação com o Ministério Público Federal contra a União e o Estado de Mato Grosso do Sul em razão da gravidade dos fatos e da abundância de estudos apontando as medidas necessárias.
A doutora em ecologia e conservação e analista ambiental Joanice Lube Battilani, chefe da Divisão Técnica Ambiental do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), explica que o Taquari é considerado rio de domínio da União das nascentes até a foz com o rio Coxim, no município de Coxim (MS), a 258 km de Campo Grande. Ele percorre cerca de 800 km de leste a oeste no Estado, no planalto e no pantanal. A partir de Coxim, onde ocorrem os arrombamentos, a fiscalização é de responsabilidade do governo do Estado de Mato Grosso do Sul.
Em cumprimento a decisão judicial, o Ibama realizou cinco operações de fiscalização na Bacia do Alto Taquari entre 2013 a 2015. Foram notificadas 250 propriedades rurais e atendidos 63 pedidos para que apresentassem projetos de recuperação de áreas degradadas. As infrações totalizaram R$ 2.612.800 de multas aplicadas.
Silvio Andrade/Arquivo pessoal
Baías formadas pelo rio Taquari exploradas pelo turismo na serra do Amolar
Ministério diz trabalhar contra erosão
Em nota, o Ministério do Meio Ambiente informou que para recuperar a bacia hidrográfica está fazendo o terraceamento (técnica para evitar erosão que cria uma espécie de escada) de estradas para evitar que o terreno arenoso seja arrastado pelas chuvas para a calha do rio, bem como o controle dos processos erosivos e o plantio de mudas que serão destinadas para as Áreas de Proteção Permanente às margens do rio.
A ANA informou, ainda, que nesta região acontecem conflitos diretos com a prática de fechamento dos arrombamentos realizada por fazendeiros, que traz prejuízo aos pescadores, influenciando a mortandade de peixes e o ciclo reprodutivo.
Procurado desde o dia 15 de agosto, o governo do Estado de Mato Grosso do Sul, por meio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico (Semade) e do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul), recebeu as perguntas para dizer o que o governo está fazendo para mudar essa situação, mas não havia respondido os questionamentos até a publicação desta reportagem.
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