"É uma grande indústria que clama por um marco regulatório definitivo”. A afirmação, em tom de desabafo, foi feita pelo presidente da Associação dos Produtores de Queijo da Serra da Canastra (Aprocan), sediada em São Roque de Minas (Centro-Oeste de Minas), João Carlos Leite, em audiência pública realizada na tarde desta quarta-feira (27/5/15) pela Comissão de Política Agropecuária e Agroindustrial da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
A declaração ilustra o dilema vivido atualmente pelo setor em Minas, que conta com uma legislação estadual avançada, mas que tem sua atuação restrita pela falta de sintonia com a regulamentação em nível federal. Esse descompasso dificulta a legalização de produtores e, sobretudo, a comercialização do queijo artesanal mineiro, de qualidade reconhecida nacionalmente, em outros Estados.
Resultado de amplo processo de pesquisa, consulta e negociações com os produtores e órgãos de fiscalização sanitária, a Lei 20.549, de 2012, fruto de um projeto do deputado Antônio Carlos Arantes (PSDB) aprovado pela ALMG, representou mais do que a simples valorização do queijo artesanal mineiro, estabelecendo um novo marco legal para a expansão do negócio, incluindo, além do queijo curado (termo que designa o tempo de maturação do produto), outros tipos de queijo artesanal, como o meia-cura (o preferido pelo mercado), o cabacinha e o requeijão artesanal, abrindo a possibilidade ainda para que outros, que podem ou não ser produzidos com leite de vaca, sejam reconhecidos no futuro.
A grande diferença é que, pelas regras anteriores, para se legalizar, o produtor precisava primeiro adaptar sua queijaria às regras vigentes, para só depois se registrar no Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA). Para estimular o cadastro dos produtores no órgão de controle sanitário do Estado, a Lei 20.549 criou um meio termo, em que o produtor fica autorizado a comercializar seus queijos durante um determinado período, que pode inclusive ser ampliado conforme as metas sejam cumpridas, até que consiga a habilitação sanitária definitiva.
Mas, na prática, ainda há entraves que desestimulam o produtor, entre eles a ausência de universalização da habilitação sanitária e, mais especificamente, a complexidade na regularização tributária das chamadas agroindústrias familiares dos queijos artesanais. Os deputados Fabiano Tolentino (PPS), presidente da comissão; Emidinho Madeira (PTdoB), Nozinho (PDT), Inácio Franco (PV) e Rogério Correia (PT) assinaram o requerimento que possibilitou o debate desta quarta-feira (27).
“Com muita luta, conseguimos uma legislação mais à altura da agroindústria familiar, mais prática, objetiva, mas logo depois começaram os aborrecimentos com esse modelo burocrático de Estado, que é totalmente anacrônico. Fizemos a lei, mas ela não chega na ponta com a qualidade que é preciso. A burocracia faz do poder público um inimigo, não um parceiro do produtor, e não vejo vontade de ver as boas coisas acontecerem”, avaliou o deputado Antônio Carlos Arantes.
O deputado Fabiano Tolentino ressaltou o papel da comissão nessa intermediação, fazendo um histórico dos temas já discutidos nesta legislatura. “Nossa intenção é ajudar toda a cadeia produtiva. Afinal, não podemos ignorar o papel da agricultura e da pecuária no PIB do Estado. O produtor rural é aquele que cresce mesmo com a crise, muitas vezes diante da falta de políticas públicas”, lamentou.
Política suprapartidária - O deputado Gustavo Valadares (PSDB) lembrou as dificuldades vividas pelos produtores de queijo artesanal de Medeiros, município vizinho de São Roque de Minas na Serra da Canastra. “A questão tributária é um empecilho. É preciso menos burocracia e mais estímulos à regularização dos produtores informais, uma política suprapartidária, pois são erros cometidos por todos os governos”, afirmou. Posição semelhante foi defendida pelo deputado Rogério Correia. “Não podemos partidarizar o debate, e sim, tentar resolver os problemas”, disse.
O deputado Nozinho ressaltou a importância da Comissão de Política Agropecuária no apoio aos pequenos produtores do Estado. Já o deputado Inácio Franco, apesar de reconhecer a importância de um controle sanitário eficiente, lamentou o alto grau de informalidade no setor.
Agricultura familiar - O termo agroindústria familiar refere-se à atividade agroindustrial de pequeno porte (até 250 m² de extensão), em área rural, gerida por agricultores familiares. De acordo com a consultoria da ALMG, há mais de dez anos o Legislativo estadual tem trabalhado por uma política de inclusão e formalização da agroindústria familiar, de forma a manter os produtos típicos da cultura mineira e aumentar o valor agregado dos produtos provenientes da atividade, como queijos, goiabada e farinhas, entre outros.
A política sanitária das agroindústrias é um tema em evidência nesse debate. A relevância da questão pode ser verificada na medida em que 99% dos cerca de 30 mil produtores de queijo artesanal do Estado trabalham na clandestinidade, sem inspeção e alvará sanitário. Entre os 1% de produtores regularizados, apenas 10% possuem registro para venda do produto em outros Estados. No que se refere à agricultura familiar de outros produtos em geral, a clandestinidade dos produtores cai para 96% - números que apontam para a necessidade de uma política mais forte de inclusão e estímulo à formalização.
Produtores miram fama dos queijos artesanais franceses
Uma das principais lideranças dos produtores de queijo artesanal, João Carlos Leite reconheceu o papel da ALMG, em especial da Comissão de Política Agropecuária, nos avanços obtidos até aqui, que já garantiram o aumento da renda do pequeno produtor. Ao comparar a situação do queijo artesanal mineiro, que é centenário e com raízes remontando ao Brasil Colônia, com a situação vivida pelos produtores franceses, o presidente da Aprocan alerta que ainda há um longo caminho pela frente.
“Não entendo a percepção da sociedade brasileira, que come o queijo artesanal, mas muitas vezes é contra a sua produção. A regulamentação da indústria deve ser diferente da agroindústria familiar. Precisamos inverter essa lógica, pois em qualquer lugar do mundo é assim”, destacou. Segundo João Carlos Leite, as instruções normativas editadas pelo Governo Federal têm facilitado a comercialização, mas dificultado a produção, sob o argumento do risco sanitário. Uma das maiores polêmicas diz respeito ao tempo de maturação, no qual estudos apontam o tempo mínimo de 17 dias, contra uma maturação bem inferior dos queijos artesanais mineiros, sob pena de descaracterização do produto.
“Nós, da Canastra, avançamos muito, e para isso tivemos que ver como esse mercado funciona na França. Há muita semelhança, mas a diferença é que, no caso de Minas, temos mais queijo sendo fabricado do que mineiro para comê-lo. Por isso, temos que levá-lo para fora. Por isso, abrimos uma frente de batalha dentro do Ministério da Agricultura. De nada adiana avançar em Minas e regredir em Brasília”, apontou João Carlos Leite.
Na França, segundo ele, há 458 tipos de queijo artesanais catalogados, famosos e valorizados no mundo inteiro. Na Serra da Canastra, os produtores legalizados vendem a unidade padrão por valores entre R$ 30 e R$ 50, contra um preço médio de R$ 10 praticado pelos produtores que atuam à margem da lei. “A lei da oferta e da procura é implacável, e isso dá margem para abusos. A segurança alimentar sempre foi nosso objetivo, pois temos que preservar um ativo financeiro capaz de gerar milhões de reais”, defendeu João Carlos Leite.
Serro - O presidente da Associação dos Produtores Artesanais de Queijo do Serro, Eduardo José de Melo, apoiou as declarações dadas pelo colega da Canastra, reforçando a importância de uma divulgação melhor para que o consumidor saiba identificar o queijo artesanal de qualidade e produzido legalmente. “Já vi queijo que supostamente foi produzido na minha região sendo vendido a até R$ 5 na porta de supermercado. O consumidor não sabe o que está comprando”, alertou.
Já o diretor de Política Agrícola e Cooperativismo da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Minas Gerais (Fetaemg), Marcos Vinícius Dias Nunes, também chamou a atenção para a necessidade de o Estado dar tratamento diferenciado à agricultura familiar, em comparação com a agroindústria. “Também defendemos a regularização, mas é preciso dar condições para que isso aconteça. Todos somos consumidores e queremos produtos de qualidade. O problema é o grande número de legislações, muitas vezes desconectadas”, analisou.
Fiscalização tenta conciliar normas sanitárias com estímulo à produção
O diretor-geral do IMA, Márcio da Silva Botelho, disse que o órgão trabalha no fio da navalha. “Temos que lidar com produtores habilitados e outros que não são. Uns pedem mais facilidade para produzir, mas também somos cobrados por quem está habilitado para fiscalizar aqueles que não são. Nossa preocupação maior é com a saúde do consumidores; o que temos para atuar é a legislação”, afirmou. Ele informou que atualmente há 245 queijarias certificadas no Estado e dois entrepostos que garantem o livre trânsito do produto para outros Estados.
“O governo tem tentado ajudar o produtor em várias frentes, tanto da porteira para dentro, na produção, quanto da porteira para fora, na comercialização, sobretudo quando o que está em jogo é o sucesso da agricultura familiar”, garantiu o diretor de Infraestrutura Básica da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário, Fernando Rabelo. Nesse sentido, segundo ele, a legislação estadual está em processo permanente de aprimoramento. “Mas, mesmo na agricultura familiar, o processo de regularização é importante para garantirmos a segurança alimentar, até para que seus produtos tenham acesso a todos os mercados”, comparou.
Na mesma linha, Kalil Jabour, assessor da Superintendência de Tributação da Secretaria de Estado de Fazenda, garantiu que, no aspecto tributário, não há mais obstáculos à produção e comercialização de queijo artesanal. “Não houve a adequação da legislação, no mesmo patamar, no plano federal, e aí surgiram problemas sobretudo para as associações de produtores. Quanto à questão sanitária, o problema é que não há como se regularizar do ponto de vista tributário se isso não for resolvido primeiro”, informou.
Assistência - Por fim, o presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária, Nivaldo da Silva, reforçou a importância da preocupação das autoridades com a questão sanitária. “Temos que ter condições sanitárias compatíveis com a segurança alimentar. Para isso é fundamental, por exemplo, garantir leite de qualidade. A lei estadual foi muito bem elaborada, mas temos que garantir as condições para que ela funcione plenamente. Onde o produtor pode se apoiar para ter uma assistência profissional?”, questionou.